terça-feira, 31 de março de 2009

A hora e a vez dos trabalhadores

Pela primeira vez desde o início do governo Lula, as diferentes centrais sindicais, organizações estudantis e movimentos populares colocaram suas diferenças estratégicas, programáticas e partidárias de lado e construíram, unitariamente, uma grande mobilização nacional contra as demissões, restrições salariais e demais impactos reacionários causados pela crise econômica internacional.

Por todo o país, as ruas foram tomadas por manifestações dos trabalhadores e da juventude exigindo que o governo se posicione decididamente a favor das necessidades das maiorias populares da nação, e não das grandes empresas transnacionais que, instaladas aqui, revertem para suas sedes as divisas que, em nossas terras, poderiam contribuir para a ampliação das ações públicas necessárias ao combate à crise mundial. A redução drástica dos juros e a imposição da estabilidade no emprego para os trabalhadores, são duas das principais reivindicações que as centrais e movimentos souberam trazer ontem para o debate público, fechando as ruas e abrindo o horizonte de perspectivas para o país.

É certo que as crises cíclicas de superprodução relativa de mercadorias são parte da natureza do sistema capitalista, causadas pelo inevitável descompasso entre a ilimitada capacidade de ampliação da produção de mercadorias e a limitada capacidade de crescimento do mercado consumidor, no entanto, não é parte de nenhuma suposta natureza humana aceitar de modo submisso as anti-sociais conseqüências impostas pelo empresariado ao conjunto da sociedade no contexto das crises. É imprescindível que se expanda, nestes momentos, e de forma definitiva, a esfera e o controle públicos e democráticos sobre áreas até então submetidas à tirania do interesse privado.

Enquanto o governo Lula convoca os trabalhadores a não reivindicarem melhorias salariais e a submeterem-se passivamente às diretrizes e condições de trabalho impostas pela patronal como única forma de tentar salvar os empregos, esquecendo-se (será?) da contradição capital-trabalho como eixo estruturante de toda atividade econômica capitalista, os trabalhadores e a juventude organizados, ocupando as ruas, deixam claro que a formulação e o desenvolvimento de uma alternativa político-social à ofensiva patronal reacionária, que exige liberdade para demitir e bilhões em recursos públicos, não virá dos gabinetes e salões de Brasília, mas da iniciativa das organizações das classes populares e dos setores políticos a elas vinculadas verdadeiramente.

É necessário, diante da crise, que a esquerda que se manteve fiel a seu compromisso histórico com os trabalhadores e as maiorias populares do país, saiba aprofundar a construção coletiva de um projeto alternativo para o país, em coordenação com os sindicatos, movimentos populares e estudantis. A classe média, encolhida e brutalizada nas últimas duas décadas, precisa ser incorporada a este projeto fazendo com que o grande capital, e não ela própria, financie a redução da pobreza extrema no Brasil, diferentemente no que vem sendo feito no presente governo. Trabalhadores, juventude, classe média, pequenos e médios empresários, intelectuais, todos estes precisam construir uma capacidade política para definir os rumos futuros deste país, ou então, da crise não nascerá uma oportunidade – como em 1930 – mas sim a ruína. Agora é a hora e a vez dos trabalhadores apontarem o caminho.


Artigo publicado na edição de hoje do jornal Monitor Campista

domingo, 29 de março de 2009

Mídia, história e democracia

Voltando à polêmica causada pelo editorial da Folha de São Paulo em que se classificava o regime ditatorial empresarial-militar imposto ao Brasil entre 1964 e 1985 como uma "ditabranda", o jornal Brasil de fato coletou alguns editoriais dos grande sjornais brasileiros à época do Golpe de 64 para demonstrar clara e inequivocamente o papel destes organismos de imprensa na instalação do regime reacionário. Segue abaixo alguns trechos de alguns destes editoriais para deixar clara a relação que existe entre mídia, história e democracia no Brasil


“Vive a nação dias gloriosos. Porque souberam se unir todos os patriotas [...] para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem. Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas, o Brasil livrou-se do governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para os rumos contrários à sua vocação e tradições... Salvos da comunização que celeremente se preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares, que os protegem de seus inimigos”. O Globo.

- “Desde ontem se instalou no país a verdadeira legalidade... Legalidade que o caudilho não quis preservar, violando-a no que de mais fundamental ela tem... A legalidade está conosco e não com o caudilho aliado dos comunistas... Aqui acusamos o Sr. João Goulart de crime de lesa-pátria. Jogou-nos na luta fratricida, na desordem social e na corrupção generalizada”. Jornal do Brasil.

- “Multidões em júbilo na Praça da Liberdade. Ovacionados o governador do estado e os chefes militares. O ponto culminante das comemorações que ontem fizeram em Belo Horizonte, pela vitória do movimento pela paz e pela democracia foi, sem dúvida, a concentração popular defronte ao Palácio da Liberdade”. Jornal O Estado de Minas.

- “Escorraçado, amordaçado e acovardado, deixou o poder como imperativo de legítima vontade popular o Sr. João Belchior Marques Goulart, infame líder dos comunos-carreiristas-negocistas-sindicalistas. Um dos maiores gatunos que a história brasileira já registrou, o Sr. João Goulart passa outra vez à história, agora também como um dos grandes covardes que ela já conheceu”. Tribuna da Imprensa, na época sob comando do governador golpista Carlos Lacerda.

sábado, 28 de março de 2009

A morte da crítica?

A recente resolução da ONU, aprovada no último dia 26, que condena o que o Conselho de Direitos Humanos classificou de “difamação religiosa” como violação dos direitos humanos, estabelece uma perigosa legitimação do conservadorismo fundamentalista religioso e impõe sérios limites à liberdade de expressão e à crítica racionalista diante dos sistemas de crenças institucionalizados e aos sistemas políticos e sociais sobre eles erigidos.

A medida proposta pelo Paquistão em nome dos países islâmicos, baseou-se na necessidade de encontrar um “delicado equilíbrio entra a liberdade de expressão e o respeito às religiões”. Apoiada sob a hegemonia de um multiculturalismo baseado em um relativismo cultural absoluto que, entre outras coisas, vem conduzindo ao desenvolvimento de teses que afirmam que devemos considerar o atual momento histórico como um momento pós-secular, a resolução da ONU institucionaliza dois gravíssimos equívocos.

O primeiro equívoco relaciona-se com a identificação de cultura com religião. Este equívoco leva a considerar o padrão cultural desenvolvido por uma determinada sociedade como algo monolítico, perfeitamente homogêneo, imune a contradições internas e amalgamado por um determinado sistema de crenças religiosas pressuposto como absolutamente consensual na sociedade em questão.

O segundo equívoco relaciona-se com a compreensão da diversidade cultural humana como um conjunto de culturas diferentes produzidas por sociedades diferentes que se absolutizam na diferença, levando a idéia de gênero humano ao colapso, pois cada sociedade produziria o “seu próprio” gênero humano ensimesmado. Este ponto de vista, revestido com o manto da tolerância multicultural, é, na verdade, anti-humanista em seus pressupostos e em suas conseqüências, pois, de um lado, rompe com a unidade genérica da espécie humana e, por outro lado, leva à indiferença prática em relação ao outro (autoencapsulado em sua diferença) assim como ao impedimento da crítica e da idéia de progresso humano.

Em termos estritamente pragmáticos, a resolução da ONU efetivamente servirá aos interesses dos reacionários governos baseados no fundamentalismo religioso de modo a legitimar sua perseguição aos dissidentes progressistas como forma de defesa dos direitos humanos. Extremamente lamentável e simbólica a decisão do Conselho de Direitos Humanos da ONU que demonstra realmente a hegemonia irracionalista no pensamento como complemento do desenvolvimento tardio do sistema capitalista. Lukács sempre esteve correto.

sexta-feira, 27 de março de 2009

O presidente-pelego

Em um importantíssimo e histórico momento em que todas as centrais sindicais do país – unitariamente – juntamente com o movimento estudantil e popular, convocam uma grande mobilização nacional para o dia 30 próximo, em uma ação de enfrentamento contra a ofensiva patronal desencadeada pela crise econômica internacional, o presidente Lula deixa muito claros os limites concretos de sua concepção e opção política estratégica.

Um dos principais pontos da pauta de reivindicações da mobilização nacional dos trabalhadores e da juventude organizada é a exigência de uma medida provisória a ser assinada pelo presidente garantindo a estabilidade dos trabalhadores no emprego, no atual momento, como forma de barrar a anti-social onda de demissões levada a cabo pela patronal.

Enquanto alguns setores do movimento sindical, estudantil e popular ainda depositam uma subordinada confiança no governo federal, abrindo mão da própria autonomia organizacional, tática e estratégica, o presidente Lula vem a público convocar os trabalhadores a se submeterem às exigências patronais no contexto da crise, estancando qualquer reivindicação e contribuindo com o aumento da produtividade empresarial como forma de tentar garantir os empregos ameaçados. É a típica fala do sindicalista pelego que tenta se colocar entre a luta dos trabalhadores e as privilegiadas posições do empresariado.

Não constitui nenhuma grande surpresa o discurso do presidente, o seu quase-novo-desenvolvimentismo possui claros e nítidos limites de classe (burgueses) e, ainda mais, porque é inevitável que sua posição tenda tanto mais à direita quanto mais avance a luta social. Lamentavelmente, muitos companheiros, por patriotismo partidário ou ultra-pragmatismo, mantém-se atrelados às diretrizes do governo desarmando-se para a defesa de posições sociais seriamente ameaçadas. No entanto, contra o discurso do presidente-pelego, é hora de reforçar a convocação unitária para a mobilização nacional do dia 30 contra as demissões e os demais efeitos reacionários da crise.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Todo apoio à greve dos petroleiros

Diante da mobilização grevista, o que de alguma forma referenda o conteúdo da postagem anterior deste blog, cabe a mim manifestar integral solidariedade aos companheiros em greve. Todo apoio à greve dos petroleiros!

Os trabalhadores e a crise

Diferentemente do que veiculam as teses mais up to date nas ciências sociais contemporâneas, a realidade efetiva vem demonstrando que são os trabalhadores aqueles que têm conseguido, ainda que de modo incipiente, exercer alguma pressão social no sentido do combate aos efeitos da crise econômica e, mais especificamente, à orientação imposta pelas elites dominantes no sentido de socializar os prejuízos causados pela crise enquanto tentam salvar a lucratividade privada.

Seja na França, onde os sindicatos de trabalhadores – com uma adesão crescente – promoveram nesta semana a segunda greve geral em menos de dois meses, seja no Brasil, onde um grupo cada vez maior de sindicatos aprofunda um processo de mobilização contra demissões e restrições salariais, o que fica cada vez mais explícito é que a capacidade de impor limites aos estragos provocados pela crise capitalista e, ao mesmo tempo, salvaguardar garantias sociais e apontar para a superação do arranjo econômico atual encontra sua centralidade justamente na classe trabalhadora e em suas organizações de classe. Ao contrário dos desejos patronais e das teorias sociais pós-modernas, nem a classe trabalhadora e nem os seus sindicatos tornaram-se peças de museu, ao contrário, demonstram a cada dia a efetividade e a urgência de sua ação político-social como horizonte para a superação de um modelo civilizacional em grave crise.

No Brasil, um aspecto contraditório desta realidade geral reside no fato de que as direções das maiores centrais sindicais do país – CUT e Força Sindical – adotam um programa rebaixado e algo capitulador diante da crise. Os acordos negociados por estas centrais no que diz respeito à flexibilização de direitos e reduções salariais, bem como à doação de dinheiro público às grandes empresas, revelam-se extremamente contrários às necessidades concretas dos trabalhadores de não ceder diante das pressões patronais que tentam se beneficiar da crise para ampliar sua margem de poder econômico e social.

Apesar da orientação das cúpulas das grandes centrais, o fato é que organizações menores como a Conlutas e a Intersindical e muitos sindicatos agindo espontaneamente têm conseguido construir uma alternativa de ação necessária, possível e urgente no Brasil da crise.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Bancos Centrais independentes em crise


Um dos mais importantes dogmas da teologia neoliberal do Deus-Mercado, a imperiosa necessidade de garantir absoluta independência aos Bancos Centrais em relação aos órgãos estatais sujeitos à soberania popular vive uma profunda – e talvez terminal – crise de legitimidade. Diante de tal situação divulgo abaixo o artigo recentemente redigido pelos estudiosos Juan Torres Lopez e Alberto Garzon Espinosa, e publicado no portal da agência Carta Maior, que constrói um bem elaborada crítica aos fundamentos ideológicos da independência dos Bancos Centrais.


O grande fracasso dos Bancos Centrais independentes

A crise que estamos vivendo pôs em evidência muitos fracassos que já ninguém pode dissimular: o da ideia de que os mercados se podem auto-regular com sucesso, o dos princípios que inspiraram a gestão financeira e, sobretudo, o daqueles que fizeram crer a todo mundo que aquilo que convém aos financeiros e especuladores é bom para todos, para citar apenas três deles. Mas há um fracasso especialmente importante, o qual se tenta varrer para debaixo do tapete: o dos bancos centrais independentes.

Nas últimas décadas tiveram no papel uma capacidade imensa para decidir, vigiar, autorizar ou pôr em andamento a política monetária. Praticamente não houve um aspecto das finanças nacionais e, por extensão, internacionais sobre o qual não tenham podido atuar mais ou menos diretamente. E tudo isso sem interferências, com plena independência, de modo que agora não podem assacar senão às suas próprias limitações os desastres que contribuíram para provocar. Com o tempo, poder-se-á analisar com mais detalhe o papel que tiveram, mas de momento é fácil avaliar que, ao impulsionar as mudanças tão negativas que ocorreram nos últimos anos e ao deixar agir os grandes poderes financeiros, atuaram como catalisadores da crise.
(...)

terça-feira, 17 de março de 2009

Educação e o fetichismo da tecnologia

O presente ano letivo na rede estadual de educação se iniciou sob o signo do fetichismo da tecnologia. Ao lado do PDE, o chamado PAC da educação, imposto pelo governo federal, que promete quantia em dinheiro às escolas e professores em contra-partida ao desenvolvimento de “projetos educativos”, o governo estadual faz da glorificação da tecnologia o centro de sua política educacional.

A instalação de microfones e alto-falantes nas salas de aula, assim como de um vasto sistema de informática que promete controlar a freqüência dos professores e alunos nas salas de aula (o chamado ponto eletrônico-digital), as notas e avaliações aplicadas aos estudantes, bem como a quantidade de alimentos consumidos por estes nas merendas formam um mirabolante e multimilionário projeto educacional que se complementa com a noção de “otimização” da rotina escolar.

O governo de Sérgio Cabral vale-se do tremendo peso social do fetichismo da tecnologia para tentar convencer a sociedade da razoabilidade do absurdo. A idéia de que a presente crise educacional, na qual se encontra mergulhado o estado do Rio de Janeiro, deve sua causa a um suposto atraso tecnológico é tão fácil, como falsa e interessada. É fácil porque se atrela a um senso comum cada vez mais bombardeado pelas noções que atribuem às inovações tecnológicas uma verdadeira onipotência.

É uma idéia falsa porque, na verdade, o centro da crise educacional se encontra na precarização do trabalho docente e no sucateamento das condições de ensino-aprendizagem. Enquanto o governo prepara-se para destinar muitos milhões de reais para a compra dos equipamentos a serem instalados em todas as salas de aula da rede estadual, os profissionais do ensino recebem um dos mais baixos salários do país, e os funcionários técnico-administrativos recebem um piso salarial bem abaixo do salário mínimo. Enquanto se pretende controlar digitalmente, com um computador em cada sala de aula, a freqüência dos alunos, grande parte das escolas se encontra em um estado físico calamitoso e as salas de aula se encontram cada vez mais inchadas, em grande parte dos casos ultrapassando o número de 50 alunos.

A Unesco (organismo das Nações Unidas para educação e cultura) afirma expressamente que uma sala de aula não pode contar com mais de 25 alunos para que o processo de ensino-aprendizagem aconteça de modo adequado, por outro lado, o governo Cabral obstaculiza a formação de turmas com menos de 35 alunos, de modo a não revelar a monstruosa carência de professores na rede, em função dos vergonhosos salários. Professores mal pagos tornam-se incapazes de promover sua formação continuada e precisam trabalhar em cinco, seis ou mais escolas para garantir uma renda aceitável, precarizando e superficializando, obviamente, sua relação educativa com os alunos.

Podemos dizer ainda que a idéia do fetichismo tecnológico transformada por Cabral em política educacional é uma idéia interessada porque as transferências de recursos públicos para o setor privado serão gigantescas. É importante que a sociedade e os poderes democráticos constituídos mantenham-se vigilantes em relação aos volumosos fluxos de dinheiro público que prometem verter em breve.


Artigo publicado na edição de hoje do jornal Monitor Campista

segunda-feira, 16 de março de 2009

Resposta ao desafio

Segue abaixo minha resposta ao desafio proposto a mim pelo Xacal, trata-se de um trecho da página 34 do livro "As ilusões do pós-modernismo" de Terry Eagleton. Boa leitura!

Apesar de toda sua alardeada abertura para o Outro, o pós-modernismo pode se mostrar quase tão exclusivo e crítico quanto as ortodoxias a que ele se opõe. Pode-se, em geral, falar da cultura humana mas não da natureza humana, de gênero mas não de classe, do corpo mas não da biologia, da fruição mas não de justiça, dom pós-colonialismo mas não da burguesia mesquinha. Trata-se de uma heterodoxia todo ortodoxa, que como qualquer forma imaginária de identidade precisa de seus bichos-papões e alvos imaginários para manter-se na ativa.

domingo, 8 de março de 2009

8 de março: dia de luta pela igualdade

O Dia Internacional da Mulher deveria ser entendido e divulgado como um dia de luta de toda humanidade. O projeto de construção da igualdade social não pode sequer ser concebida sem ter no centro de suas preocupações a supressão da milenar – e quase universal – opressão exercida sobre as mulheres.

Foi necessário que algumas jovens operárias fossem queimadas vivas pelo seu patrão, em retaliação ao movimento grevista que estas levavam adiante, nos Estados Unidos do século XIX, para que a sociedade moderna acordasse para a urgência da causa da igualdade de gênero. Complementarmente, é preciso nunca esquecer que enquanto uma parcela da sociedade vive na opressão, nenhuma outra parcela pode viver, efetivamente, em liberdade e com plenitude de sua potencialidade humana.

No momento mesmo em que a igreja católica deixa explícito o quanto a civilização ocidental ainda se encontra sitiada pelas forças sócio-políticas do atraso que mantém distante da realidade a emancipação feminina, este 8 de março acaba tornando-se um momento ainda mais especial. A defesa do direito da mulher sobre o próprio corpo ou, no mínimo, a sensibilidade diante do fato da morte de um imenso número de mulheres por ano no Brasil em decorrência dos abortos clandestinos, leva à justa reivindicação pela legalização do aborto.

As religiões e igrejas têm todo o direito de orientar suas fiéis a adotar esta ou aquela postura pessoal, no entanto, é absurdo que em pleno século XXI, tais organizações continuem a transformar seus dogmas anti-científicos em política pública, imposta ao conjunto da população, mesmo àquelas parcelas que não comungam de tais crenças. Neste dia de hoje, faz-se necessário proclamar bem alto os direitos que a humanidade conquistou ao libertar-se do obscurantismo medieval e ao servir-se de suas faculdades racionais. As modernas concepções de democracia, justiça, igualdade e liberdade, são o resultado da aplicação dos princípios racionais à vida social, continuar a fazê-lo implica em defender, nos nossos dias, a descriminalização do aborto e a emancipação feminina.

Realismo crítico

É muito importante saber que diante dos múltiplos avanços do irracionalismo obscurantista e fundamentalista, como expresso no caso do ataque da igreja católica à família da menina de 9 anos estuprada pelo padrasto, os partidários do pensamento progressista são capazes de contra-atacar. Divulgo abaixo a chamada de trabalhos de um evento intelectual da maior importância a se realizar na UFF em Niterói. Diferentemente do que entende o senso comum (mesmo o senso comum culto e científico) a filosofia tem um papel enorme, para o bem ou para o mal, na definição das formas de nossa vida social, e o realismo crítico é o que há de mais avançado nesta esfera do pensamento, seu desenvolvimento é certamente fundamental para o progresso social como um todo.

A XII Conferência Anual da Associação Internacional para o Realismo Crítico (IACR) terá como tema "Realismo e Emancipação Humana: Um Outro Mundo É Possível?". O evento será sediado pela Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, no período de 23 e 25 de julho de 2009 e contará com a presença de renomados intelectuais brasileiros e internacionais (Alex Callinicos, Alvaro Bianchi, Mario Duayer, Nicolas Tertulian, Roy Bashkar, Virgínia Fontes e muitos outros).

Tema da Conferência: Realismo e Emancipação Humana: Outro Mundo É Possível?

Nos últimos trinta anos o realismo crítico apresentou o seu projeto de elaborar uma o­ntologia que pudesse rivalizar em qualquer nível com a o­ntologia explícita nas tradições positivista e idealista. A o­ntologia resultante desse esforço coletivo deveria ser capaz de fornecer à ciência, natural e social, um fundamento filosófico explícito.

A filosofia para a ciência proposta pelo realismo crítico pressupõe que a verdade faz uma diferença. Contra doutrinas teóricas da moda contemporâneas, para as quais a verdade é simplesmente uma “quinta roda”, o realismo crítico concentra seus esforços na demonstração de que podemos ter um conhecimento objetivo da realidade. No caso da realidade social, o realismo crítico sustenta enfaticamente que o conhecimento objetivo é um pressuposto para a emancipação humana de estruturas sociais opressivas, desiguais, indesejáveis e desnecessárias.

Afirmar a verdade como uma condição para a emancipação humana parece ser ainda mais crucial nos dias de hoje, especialmente porque a surpreendente e abrupta retirada do “relativismo no atacado” prevalente nos anos 80 e 90 deixou um rastro de idéias que influenciam as práticas científica, econômica, política, cultural etc. A conferência tem a intenção de discutir, com a contribuição de diversas perspectivas teóricas realistas, a eliminação desse rastro que, fundado no realismo empírico, implícita ou explicitamente impede conceber outro mundo possível.

Chamada de Trabalhos

Data-limite para envio dos resumos: 16 de março de 2009. Os resumos devem ser enviados para iacr2009@vm.uff.br. Os resumos devem ser no máximo de 250 palavras, de preferência em formato Word.

Os resumos selecionados serão notificados até meados de abril de 2009. Os artigos selecionados deverão ser entregues até 11 de maio de 2009. A Conferência pretende receber contribuições de todas as áreas das ciências sociais e naturais. A chamada de trabalhos dirige-se a pesquisadores que investigam temas do realismo crítico e a todos aqueles que, desde diferentes perspectivas, procuram suspender o persistente embargo à crítica o­ntológica e, conseqüentemente, reafirmam o nexo entre verdade e emancipação humana.Para mais informações, acesse o site oficial da conferência (www.uff.br/iacr/)

sexta-feira, 6 de março de 2009

Estupra, mas não aborta!


É repugnante a postura do arcebispo de Recife, da CNBB e do Vaticano no que diz respeito à condenação pública – através do rito da excomunhão – da família da menina de Pernambuco estuprada e engravidada pelo padrasto, e da equipe médica que nela realizou um procedimento de aborto.

O fundamentalismo religioso é uma chaga social que deve ser combatida em nome do progresso da humanidade e dos verdadeiros valores humanistas. Em seu zelo por dogmas petrificados e descolados da vida real, os fundamentalistas religiosos preferem a possibilidade da morte de milhares de mulheres, submetidas a abortos clandestinos, por ano a simplesmente arranhar um de seus “valorosos” princípios irracionalistas imutáveis.

O desprezo demonstrado diante do drama concreto da criança em questão e de sua família, revela o quanto estes “partidários do amor”, os fundamentalistas religiosos, expressam a antiga noção de que a pior hipocrisia é a hipocrisia de origem religiosa.

Como se fosse pouco, os “homens de fé” em questão ainda foram capazes de afirmar que o estuprador pedófilo merecia uma repreensão menos severa do que aquela reservada à família da menina e à equipe médica. É o cúmulo do anti-humanismo e da mentalidade reacionária e obscurantista. Diante de tanta escuridão, não me canso de proclamar a necessidade e as virtudes da razão que, de acordo com Habermas e os marxistas, entre outros, ainda não foi capaz de completar suas possibilidades iluminísticas em função dos constrangimentos e mutilações a ela impostas pela lógica do capital.

quinta-feira, 5 de março de 2009

"Ditabranda"?


Um recente editorial da Folha de São Paulo classificou o regime militar que vigorou no Brasil até 1985 como uma "ditabranda", em oposição ao conceito de ditadura. importantes intelectuais como a professora Maria Victoria Benevides e o professor Fábio Konder Comparato , escreveram indignados cartas abertas contra o editorial e, depois disso, foram duramente atacados nas páginas do jornal. Me somando à corrente de indignação contra a Folha de São Paulo, publico abaixo um artigo redigido por Mino Carta, o decano dos jornalistas críticos no Brasil (se é que posso classificá-lo desta forma), no qual explicita sua posição sobre o caso.


Da ditadura à democracia sem povo


Há muitos anos, um ilustre jornalista usou de suavidade ao falar da ditadura nativa. Comparou-a com as outras do Cone Sul e decidiu ter sido bem menos feroz por ter matado um número menor de desafetos. À época, não houve reações. Talvez o profissional em questão tenha menos leitores do que imagina e do que imagina quem lhe dá guarida. Que lições tirar do confronto? Na Argentina, um quinto da população brasileira, morreram 30 mil pelas mãos dos ditadores. No Chile, atualmente 16 milhões de habitantes, morreram cerca de 10 mil. No Uruguai, que não chega a 4 milhões de habitantes, 3 mil. No Brasil, algo mais que 400.


Como disse o juiz de um filme sobre o processo de algozes nazistas, o assassínio de um único cidadão por agentes do Estado já configura ofensa imperdoável à humanidade. Certo gênero de comparação serve apenas a solertes revisionistas. Não cabem dúvidas de que, caso a ditadura verde-amarela julgasse necessário, torturaria e mataria muito mais. Entendeu não ser preciso. Vale, de todo modo, concentrar a análise sobre o Brasil. Assim me parece, a partir das reações a um editorial da Folha de S.Paulo que expõe a peculiar ideia da “ditabranda”, e da agressão cometida pelo jornal contra dois leitores indignados do porte de Maria Victoria Benevides e Fábio Konder Comparato. Permito-me começar de longe, pela origem da perene desgraça nacional, a escravidão. Seus efeitos perduram implacavelmente.


Em primeiro lugar, na pavorosa, hedionda desigualdade social, que, segundo o Banco Mundial, nos coloca no mesmo nível de Nigéria e Serra Leoa em termos de distribuição de renda. Não observo nada de novo, mas faço questão de sublinhar. Temos uma minoria exígua de privilegiados e fatia, de fronteiras mais ou menos imprecisas, de aspirantes ao privilégio. O resto vive no limbo. Milhões e milhões ali não têm sequer consciência da cidadania. Se algum progresso houve, foi irrisório. E não apagou a ignorância, o alheamento, a passividade, a resignação da maioria. A escravidão representou o mais autêntico estágio da educação cultural do País. No povão deixou as marcas do chicote. À minoria ensinou prepotência, ganância, desmando. Impunidade. Arrogância. O deixa-como-está-para-ver-como-fica. A leniência com os pares (aos amigos tudo) e o rigor feroz com a malta infecta (aos inimigos a lei). Etc. etc.


O jornalismo brasileiro, desde os começos, serve a este poder nascido na casa-grande, por ter a mesma, exata origem. A mídia nativa é rosto explícito do poder. As conveniências deste e daquela entrelaçam-se indissoluvelmente porque coincidem à perfeição. Observem. Basta que no horizonte se delineiem tímidas nuvens remotamente ameaçadoras à tranquilidade da minoria e os barões midiáticos formam a mais compacta das alianças para sustar o perigo. Exemplo clássico, embora não faltem outros aos magotes, é a campanha desencadeada depois da renúncia de Jânio Quadros em agosto de 1961, destinada a desaguar no golpe de 64. Por mais de dois anos, os editoriais dos jornalões invocaram a intervenção militar contra a subversão em marcha, até que o golpe se deu sem que única, escassa gota de sangue respingasse na calçada.


Assim como faltou ao Brasil uma guerra de independência, carecemos de uma autêntica revolução popular. O golpe de 64 aconteceu e o povo brasileiro não saiu do limbo, de alguma forma nem se deu conta do evento. O qual só teve significado para quem, com o incentivo dos jornalões, organizava as Marchas da Família com Deus pela Liberdade. Liberdade? A de confirmar e garantir o status quo que favorecia e favorece os eternos marchadores. Não era, digamos, a liberdade da Revolução Francesa, aquela que no Brasil não se deu (de igualdade nem sonhar).


Não há dúvidas de que, em uma mesma época, podem conviver tempos históricos diferentes. Aqui, de inúmeros pontos de vista, ainda vigora a Idade Média. Com o apoio, às vezes frenético, da mídia. A qual cuidou, in illo tempore, de sustentar a ditadura, mesmo depois do golpe dentro do golpe, perpetrado a 13 de dezembro de 1968, com o Ato Institucional nº 5. Dos jornalões, a partir de então, só o Estadão foi censurado, com regalias, no entanto, que outros não tiveram. Podia preencher os espaços cortados pelas tesouras censoriais com versos de Camões e receitas de bolo. No caso, tratava-se de uma briga em família.


O jornal da família Mesquita fora entre todos aquele mais empenhado em solicitar a intervenção militar e já tinha candidato para as eleições que se seguiriam ao fim de uma ditadura de prazo marcado para terminar a limpeza da casa: Carlos Lacerda, o governador de metralhadora em punho. O resto da turma desta vez discordava, tinha diferente visão do futuro e dos próprios interesses da minoria. Lacerda foi cassado e o Estadão censurado. Tudo acabou em algo mais que presente. Um prêmio: o fim da censura no centésimo aniversário do jornalão, 4 de janeiro de 1975, celebrada com muita pompa e infinda circunstância.


Hoje o Estadão pretende para si o papel de vanguarda da resistência à ditadura, não registro, porém, a súbita convocação de assinaturas para um manifesto contra uma inverdade que não deixa de ser também bobagem curtida em mania de grandeza. Permito-me também chamar a atenção que até um ano atrás os jornalões cuidavam de evitar a palavra ditadura, sapecavam implacavelmente revolução em seu lugar. Ninguém protestou.


Agora a Folha de S.Paulo ofende consciências ao criar um novo vocábulo: ditabranda. Poderia dizer ditamole, soaria melhor aos meus ouvidos. Não sei quais foram os argumentos do editorial, que não li a bem do meu fígado. Talvez sejam os mesmos do remoto jornalista que comparava os números das vítimas das ditaduras do Cone Sul. Como se quem mata 400 não fosse capaz de matar 30 mil. A Folha esteve com a ditadura, com breve exceção, de 74 a 77, quando, dirigida por Claudio Abramo, manteve digna independência. Mesmo assim, no mesmo período, a empresa de Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira não deixou de publicar diariamente um órgão policial chamado Folha da Tarde, bem como estabeleceu notórias ligações com o DOI-Codi de infame memória, aquele onde foram assassinados Vlado Herzog e Manuel Fiel Filho. Claudio Abramo pagou por sua ousadia enquanto Frias e Caldeira apostavam na candidatura do general Silvio Frota para ditador da vez, ao terminar a temporada de Ernesto Geisel.


Uma crônica de Lourenço Diaféria sobre a espada oxidada do monumento do Duque de Caxias foi o estopim de pressões do Ministério do Exército, exercidas diretamente pelo general Hugo Abreu, cabo eleitoral de Frota. Abramo, e o chefe da sucursal carioca, Alberto Dines, foram afastados dia 17 de setembro de 1977. Precipitadamente. Vinte e cinco dias depois, Geisel demitiria Frota. O conjunto da obra não é edificante, mas seria injusto sentenciá-lo como pior do que o do resto da chamada grande imprensa. E haveria de ser de outra maneira? A mídia não alcança a ampla maioria dos brasileiros, a não ser por meio de novelas e domingões, e cuida de vender à minoria as conveniências do poder, lá pelas tantas personificado pela ditadura e hoje por uma democracia oligárquica, como define sabiamente Fábio Konder Comparato.


Cria-se o círculo vicioso, e uma mão lava a outra. A política brasileira precisa desta nossa mídia e a premia de todas as formas. E nada muda, quando não avança de marcha à ré. Como diria Raymundo Faoro, o Brasil é um país com as potencialidades de Hércules reduzido à condição de Quasímodo pelo esforço irresponsável, mas consciente, da elite nativa. O que a mim surpreende e acabrunha não é um editorial da Folha. Aos meus ouvidos soa normal, corriqueiro, natural. Não difere, na essência, de outros editoriais dos jornalões. Quem sabe, seja mais sincero, ou menos hipócrita. Entendo a repulsa causada em muitos leitores. De modo geral, entretanto, o que me dói é a falta de indignação diante do espetáculo diariamente encenado pela nossa mídia, recheado por preconceitos e mentiras, omissões e equívocos. Sem contar o distanciamento da contemporaneidade do mundo e a lida precária com o vernáculo.


Que aspirantes ao jornalismo busquem emprego onde podem encontrá-lo e tratem de conservá-lo quando o conseguem, isto eu entendo e justifico. Já não logro desculpar o sabujismo desbragado de profissionais experientes, sua capacidade de se converter aos ideais do patrão. E o que mais me indigna é tropeçar tão frequentemente nas páginas dos jornalões nas assinaturas de intelectuais consagrados, muitos deles a alegarem um esquerdismo de boca. Pois é, a leniência é um traço comum na minoria, exercida antes de mais nada em causa própria.


Ao cabo, pergunto aos meus perplexos botões: qual é a diferença entre ditabranda e democracia sem povo?

terça-feira, 3 de março de 2009

A democracia e o judiciário

Repercutindo o debate iniciado pelo professor Emir Sader em seu blog, proponho dinamizar o debate a respeito da relação entre democracia e o poder judiciário. Diante dos constantes, e cada vez mais graves, escândalos de corrupção e de privilegiamento de classe no judiciário brasileiro e diante do fato de que a nova constituição boliviana estabelece que os juízes devem ser eleitos pelo voto universal, como expressão da soberania popular sobre todos os poderes do Estado democrático, cabe perguntar: a extensão do princípio do sufrágio universal ao poder judiciário corresponde a um verdadeiro avanço da democracia? Tenho minha posição que é afirmar claramemente que sim, porque negar tal tese é conferir à magistratura uma natureza exclusivamente técnica, privada de quaisquer aspectos políticos, algo que talvez apenas os mais carcomidos positivistas consigam sustentar. De qualquer forma, vamos ao debate?