É preciso compreender o atual período histórico como um desdobramento da grande inflexão na estratégia do grande capital internacional iniciada com a grande crise econômica dos anos 70. A partir desta crise a grande burguesia monopolista iniciou um processo mais ou menos gradual de ruptura com as suas antigas concepções dominantes que caminharia no sentido da afirmação daquilo que ficou conhecido posteriormente como neoliberalismo, como a concepção estratégica do grande capital frente aos desafios colocados pela crise internacional. Ronald Reagan, Margareth Thatcher e Pinochet foram os pioneiros na aplicação prática dos princípios da “revolução conservadora” do grande capital contra os pilares do “Estado de Bem-Estar Social”: direitos sociais universais e forte presença sindical e “trabalhista” na sociedade.
O estabelecimento do Consenso de Washington, anos depois, no contexto da restauração capitalista na ex-União Soviética e no leste europeu, fez do neoliberalismo a visão de mundo absoluta no universo burguês. Diante da força das trombetas ideológicas neoliberais anunciando o fim da história, o triunfo definitivo e eterno do capitalismo, e a “nova” moral suprema do homo economicus. A maior parte da esquerda mundial que ainda se mantinha no campo da luta de classe dos trabalhadores fugiu em debandada para se converter aos dogmas dos – momentaneamente – vitoriosos. Em busca de respeitabilidade no admirável novo mundo neoliberal, a maioria dos ex-militantes da esquerda do trabalho, passou a admitir os limites e as contradições do sistema e da ideologia burguesa como seu horizonte político e estratégico. Ao invés do materialismo dialético e histórico de Marx – supostamente algo em vias de se tornar peça de museu – foi adotado o keynesianismo, em economia, o relativismo culturalista, em teoria social, e o irracionalismo pós-modernista, em filosofia.
É importante registrar que a presente crise avassaladora que desponta na economia mundial é também uma crise ideológica que começa, já, a sacudir as certezas e convicções dos neoliberais puro-sangue e promete, em breve, colocar também em maus lençóis esta esquerda “pós-marxista” do capital. No atual momento, em que a humanidade se vê arrastada por mais uma violenta crise cíclica inerente à lógica do capitalismo, é preciso ajudar a reconstruir uma verdadeira esquerda do trabalho que seja capaz de fazer o grande capital, e não as maiorias populares, pagar pela crise.
4 comentários:
Caro Maycon,acho que uma releitura do marxismo está mesmo na ordem do dia para compreendermos a crise e as contradicoes do capitalismo hoje. Mas nao consigo compreender como ainda acreditar no potencial revolucionário de um tal "classe trabalhadora", cuja definicao nao passa de uma abstracao ideológica dos setores da esquerda mais reticentes em enfrentar o desafio intelectual de reformular uma teoria social capaz de identificar os novos possíveis suportes sociais de um processo de transformacao social.
Roberto, de minha parte eu tenho uma tremenda dificuldade de compreender como é possível não entender a vigência, cada vez mais atual, do conceito de classe trabalhadora como potencial sujeito político-social de transformação revolucionária. Como pode ser visto como abstração o crescimento vertiginoso, em todo o mundo, do trabalho assalariado - regulamentado ou não - (que é o significado concreto da clássica noção do proletariado). Contingentes cada vez maiores de seres humanos - em especial na`Ásia, mas também na América Latina e outras regiões do mundo periférico - deixam condições de vida baseadas na economia natural e passam a reger suas vidas no âmbito da economia monetária e do trabalho assalariado, o que confirma os diagnósticos clássicos do marxismo de tendência à expansão global do proletariado.
O potencial revolucionário desta classe, do ponto de vista marxista do qual parto, nasce da contradição concreta que se estabelece entre o progresso de suas condições de vida e o desenvolvimento do sistema de produção capitalista - algo que salta aos olhos do observador em qualquer parte do mundo em nossos dias, e da "consciência possível" que se desenvolve a partir das necessidades sociais deste conjunto humano (trabalhadores assalariados)no âmbito do capitalismo (faço referência aqui à noção lukacsiana de "consciência de classe" enquanto situação de classe tornada consciente).
Concordo com com você que é absolutamente necessário para a esquerda colocar a si mesma o grande e permanente desafio intelectual de pensar o presente e as potencialidades do futuro, no entanto, discordo de você no que diz respeito a afirmar que o conceito de classe trabalhadora (enquanto sujeito revolucionário, não necessariamente mas potencialmente)e, de modo mais amplo, o marxismo hajam caducado e estejam a exigir superação. O pensamento não-marxista, pós-marxista ou anti-marxista ainda não se mostrou capaz de, colocando-se frente à realidade concreta, afirmar qualquer pretensa superioridade sobre os pressupostos fundamentais do materialismo dialético. Saudações e grato pela oportunidade de um debate tão necessário. Um abraço!
Caro Maycon,
obrigado pela resposta generosa e atenta. Eu acho que cabe ao pensamento marxista reformular uma nova teoria social normativa que aponte os possíveis sujeitos do processo histórico de transformacao, e nao ao pensamento pos-marxista. É marxista por que se trata do pressuposto que o capitalismo possui contradicoes que o expoe a um processo de crítica e transformacao possível. Mas acho que a nocao lukacsiana de "consciência de classe" enquanto situação de classe tornada consciente engessa a reflexao sociológica numa premissa normativa que confunde o fato da classe assalariada experimentar do modo mais opressor possível a contradicao com o fato de ser ela, necesseriamente,o lugar social de onde vai partir a crítica do capital. Nao há uma teoria da acao capaz de explicar porque a vivencia extrema desta contradicao leva a constituicao de uma consciencia de classe com missao transformadora. Nisto Marx estava errado e Lukacs também. O problema maior é que falta uma teoria de como se forma e como se transforma o entendimento da sociedade sobre ela mesma em sentido amplo, como se constitui uma saber que pode transformar o social.... Falta sociologia no marxismo engajado. Quando voce fala em classe trabalhadora referindo-se a expansao pelo mundo dos assalariados regulados ou nao ai está o ponto fundamental responsável pela idenfinicao conceitual e pela idealizacao política da classe trabalhadora. Os assalaridados que mais crescem pelo mundo sao é a ralé do trabalho sem potencial de solidariedade entre os explorados, condenados que estao a uma vida sem presente nem futuro e por isso também impedidos de qualquer potencial revolucionário, visto que para "terem um futuro a ganhar" eles precisam antes de uma seguranca identitária enraizada no presente.
Caro Roberto, prossigamos nesta senda do bom e saudável debate. Costumo acompanhar o blog do qual você participa e acho que traz debates interessantíssimos, mas confesso que não havia identificado ainda sua filiação intelectual ao campo do marxismo, se é que entendi direito seu último comentário, o que compreendo como bastantes positivo e me faz perceber que, possivelmente, compartilhamos mais noções comuns do que eu havia pensado em um primeiro momento. No entanto, permita-me discordar de algumas colocações suas no último comentário.
Quanto à classe trabalhadora e seu potencial revolucionário, eu não compartilho de sua leitura de Marx e Lukács porque em nenhum momento, na obra de ambos, aparece a idéia de que a contradição objetiva entre o progresso das condições de vida do proletariado e o desenvolvimento das formas capitalistas de produção e intercâmbio se traduzirá inevitável e imediatamente em um determinado padrão de valores e concepções de mundo subjetivas na classe trabalhadora que a impelirão à ação revolucionária. Entendo que esta leitura esquematiza e empobrece demasiadamente a contribuição de Marx e da tradição marxista no que diz respeito ao tema. Em Marx este problema é tratado na forma da idéia da transformação da “classe em si” em “classe para si”. Esta transformação só pode se realizar mediante a ação consciente e intencional dos comunistas atuantes junto à classe contribuindo para a promoção do processo de organização ativa dos trabalhadores. Ou seja, a passagem da classe em si no sentido da classe para si não é, em Marx, nem inevitável nem imediata, mas sim o resultado possível (e desejável) da ação política do partido (já em um fraseado e em uma interpretação mais leninista de Marx).
O que eu entendo que Lukács estabelece de modo tão simples quanto brilhante, a partir da problemática colocada pela sociologia de Weber (e, lamentavelmente retomado de modo bastante insatisfatório por Mannheim, posteriormente) é a questão da relação entre sociedade (e suas classes) e conhecimento (e suas implicações). Lukács afirma que só foi possível firmar as bases de uma compreensão adequada da lógica e das contradições da sociedade capitalista, e só é possível prosseguir no aprofundamento desta compreensão (e, conseqüentemente, fazer a sua crítica e apontar para sua superação), a partir do ponto de vista dos interesses e necessidades sociais do proletariado, interesses e necessidades sociais que nascem da condição objetiva desta classe no interior da estrutura social capitalista. De modo algum isto significa, e Lukács o enfatiza bastante, que os trabalhadores tendem ao desenvolvimento espontâneo de uma compreensão crítica da sociedade e de uma ação revolucionária, ao contrário, Lukács afirma (juntamente com Lênin) que sem a intervenção daquilo que mais tarde Gramsci definirá como intelectuais orgânicos, a classe trabalhadora em si tende a desenvolver espontaneamente, no máximo, uma “consciência trade unionista” nas palavras de Lênin. As concepções centrais de Lukács em “História e consciência de classe” podem ser resumidas a seguinte noção: a compreensão adequada da sociedade capitalista e suas contradições ( e, logo, sua crítica radical e sua superação) só pode se desenvolver a partir do ponto de vista dos interesses e necessidades sociais daquele conjunto humano que, em função de sua condição objetiva, só pode garantir progressos em sua existência contrapondo-se à lógica do capitalismo: o proletariado. O que está colocado aqui em Lukács é que todos aqueles setores sociais e políticos que pretendam se colocar à altura de um processo de superação do capitalismo precisam desenvolver seu pensamento e ação partindo do ponto de vista dos interesses e necessidades do proletariado.
Concordo com você quando afirma que a extrema fragmentação e precarização da classe trabalhadora em nossos dias, estabelece desafios colossais aos partidários da transformação social, no entanto, esta fragmentação e precarização, não invalidam aquela contradição entre os interesses do proletariado e o desenvolvimento do capitalismo, ao contrário, a aprofundam. Se, por um lado, a tarefa eminentemente política de transformar a “classe em si” em “classe para si” ganha contornos de dramática complexidade, por outro lado, a “manifestação espontânea” da contradição entre o proletariado e a lógica do capitalismo explode diante dos nossos olhos, principalmente na América Latina, onde as massas populares proletarizadas vêm protagonizando um processo crescente de enfrentamento contra os interesses do capital, inclusive como suporte social dos governos mais ou menos progressistas da Venezuela, Bolívia, Equador. Estas são algumas questões que considero mais fundamentais no que diz respeito à nossa controvérsia, mais uma vez te agradeço pela oportunidade do debate e prossigamos sempre neste caminho. Um abraço!
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