Passamos a década de 90 inteira e metade da presente década, absolutamente sufocados pela hegemonia do pensamento neoliberal. Nós, os socialistas coerentemente marxistas e revolucionários, fomos (e ainda somos) duramente combatidos e também fomos (cada vez menos) eficazmente sitiados e relegados aos guetos intelectuais e políticos, onde colaram-nos os rótulos de anacrônicos, românticos, fanáticos, anti-democráticos (?!), e, na melhor das hipóteses, pitorescos. No contexto da ofensiva econômica, política, social e ideológica do grande capital, turbinada pela restauração capitalista na ex-União Soviética e países do leste europeu, a maior parte dos setores da esquerda internacional iniciou, ou aprofundou, dependendo do caso em questão, seu processo de capitulação político-ideológica diante do capitalismo e de conversão aos dogmas do “pensamento” neoliberal: fim da história, democracia burguesa como valor universal, o mundo capitalista como “aldeia global”, mercado livre como “mão invisível” promotora de bem-estar, e outras incríveis descobertas que, como estas, vistas pela ótica do presente, se apresentam como o que de fato são, ou seja, peças de propagando ideológica pró-capitalista.
Os recentes acontecimentos decorrentes da profunda crise econômica na qual mergulha o capitalismo estadunidense, e que começa a arrastar junto a humanidade, expõem ao ridículo uma das mais importantes teses – ou dogmas – do pensamento neoliberal: a estupenda vantagem e imperiosa necessidade de promover o “Estado mínimo”. Em nome desta tese, que advoga que os países e povos do mundo serão tanto mais prósperos e felizes quanto mais rápida e profundamente limitarem o tamanho (financeiro, econômico, administrativo e político) do Estado, abrindo alas para que o mercado capitalista possa, por si só, reorganizar os mais amplos aspectos da vida social, históricas conquistas da classe trabalhadora e da humanidade, como um todo, foram demolidas. Ao redor do mundo, o espaço democrático do exercício da cidadania foi sendo restringido pelo avanço das tropas do mercado capitalista, tendo à frente a bandeira do Estado mínimo.
Ora, em menos de um mês, pudemos testemunhar, na pátria do neoliberalismo – onde este pensamento está longe de haver sido abalado -, a intervenção do Estado, por meio dos fundos públicos (na grandeza de mais de 280 bilhões de dólares), assumindo o controle e as dívidas, ou seja, estatizando, três das maiores empresas do setor financeiro dos Estados Unidos: Fannie Mae e Freddie Mac (ligadas ao financiamento imobiliário) e, agora, AIG (uma das maiores seguradoras do mundo). Este conjunto de operações realizadas pelo aparato estatal estadunidense é, contraditoriamente, aplaudido ou, no mínimo, saudado como “necessário” pelos teólogos do Deus-mercado. Para estes economistas-de-mercado a questão é simples: a estatização de grandes corporações transnacionais por parte de governos do mundo subdesenvolvido em nome da maior autonomia econômica nacional é errada, mas, por outro lado, a estatização de grandes bancos e seguradoras por parte do governo Bush para salvar o capital financeiro da bancarrota é justa e necessária. É este tipo de gente que se acha no direito de estabelecer o certo e o errado para os povos do mundo.
Quando nós, os marxistas coerentes, no passado recente, falávamos que era impossível um capitalismo sem crises cada vez mais severas, respondiam que isto era uma teoria superada pela pujança da “globalização”. Quando falávamos que a democracia capitalista era apenas uma das formas da ditadura da burguesia sobre os trabalhadores, acusavam-nos de totalitários. Quando falávamos que o “Estado mínimo” era o Estado exclusivamente voltado aos interesses do capital, respondiam que éramos burocratas e partidários da ineficiência administrativa. Hoje, os fatos nos dão razão: a internacionalização da crise econômica estadunidense, até agora, menor apenas que a crise de 29, espalha incertezas, desemprego e fome (a crise dos alimentos, produzida pelo movimento especulativo nascido da crise imobiliária estadunidense, aumentou o número de famintos do mundo de 850 milhões para quase 1 bilhão de pessoas no mundo, do ano passado para cá); diante das contradições do capitalismo a burguesia, em vários casos, começa a se desvencilhar dos limites de seu regime democrático e assumir feições nitidamente bonapartistas e fascistas, como as direitas ianque, européia e latino-americana demonstram cada vez mais; o mesmo pensamento neoliberal que advoga o restrição dos direitos trabalhistas e previdenciários, a redução dos investimentos em saúde e educação pública, e a privatização de recursos naturais e empresas públicas estratégicas para a autonomia nacional, exige que montanhas de dinheiro público sejam torradas para salvaguardar os interesses de banqueiros e especuladores financeiros. Nós, os socialistas, continuamos os mesmos: contra a teologia neoliberal do Deus-mercado e do Estado mínimo erguemos a bandeira do “Estado-máximo”, ou seja, o alargamento progressivo do controle público e democrático da própria sociedade sobre o seu processo de desenvolvimento.
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