quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

O que fazer da bancarrota dos bancos?


Apesar de ser talvez um pouco longo, este texto recém-publicado pelo professor Bernardo Kucinski sobre a crise do sistema financeiro e as alternativas que se colocam diante da sociedade contemporânea é verdadeiramente fundamental. Como a história é realmente a senhora das idéias e dos consensos, é notável perceber como a reivindicação pela estatização do sistema financeiro, considerada até bem pouco tempo atrás como uma loucura pelo consenso neoliberal mais ou menos ortodoxo, hoje vai se colocando como uma necessidade até mesmo para insuspeitos intelectuais moderados.

O que fazer da bancarrota dos bancos?

Ao negar sua função básica de canalizar poupanças para o giro da economia, os bancos privados não estariam cavando sua sepultura? O que fazer para forçar os bancos a soltar o dinheiro que estão recebendo dos governos? O que fazer com os grandes bancos e instituições do sistema financeiro internacional, como o FMI e Banco Mundial, que fracassaram vergonhosamente antes, durante e depois da crise? Que alternativas o movimento social poderia emplacar? Achar que apenas uma nova regulamentação resolveria o problema dos bancos é pensar pequeno, disse o economista do DIEESE, Adhemir Mineiro, num dos seminários do Fórum que tratam da crise.”É usar como remédio o próprio veneno.” Para ele não se trata simplesmente de devolver aos bancos a solidez perdida, é preciso mudar toda a sua forma de atuar, sua função no processo econômico, e o próprio processo. Não adianta mudar certas regras, se for mantida a hegemonia do capital financeiro. É preciso dar institucionalidade à discussão.


Oscar Ugarteche, economista mexicano diz que até mesmo a dimensão ecológica precisa entrar na definição dos novos modos de produção e financiamento. Ele compara o colapso de hoje dos sistema financeiro como a perspectiva de colapso iminente do sistema ecológico, para mostrar como as mudanças precisam ter muito mais profundidade e amplitude. Os bancos deveriam ser todos socializados, disse o ex-ministro de Obras da Espanha Joseph Borrell, nesse mesmo seminário. “Seja via estatização ou pela transformação em bancos de economia solidária ou cooperativas de crédito. É a forma de acabar com a contradição de bancos serem bens privados apesar dos serviços financeiros serem um bem público. A sociedade precisa serviços financeiros. Um banco pode até quebrar, mas o sistema financeiro é necessário ao conjunto da sociedade. Os serviços financeiros deveriam ser definidos como um serviço de utilidade pública, como são os transportes públicos. A estatização foi adotada até agora penas pelo governo britânico e mesmo assim parcialmente, porque seus efeitos são profundos, já que é quebrada a espinha dorsal do capital financeiro e toda sua imbricação na economia. A estatização já é defendida no Brasil por economistas respeitados, inclusive Luiz Gonzaga Belluzo. E pelas mesmas razões do Borrel: não porque nossos bancos estejam quebrando, e sim porque não estão exercendo a função pública de financiar as investimentos e transações econômicas. Só os bancos públicos, BNDES, Banco do Brasil e Caixa Econômica estão dando ao governo alguma capacidade de operar políticas anti-cíclicas. Se dependêssemos só do Itaú e do Bradesco, já estaríamos totalmente quebrados. E pensar que os tucanos queriam privatizar esses também...dá até calafrios.


Muito mais difícil do que resolver o problema do sistema financeiro de cada país é montar uma novo sistema financeiro internacional para substituir o defunto acordo de BrettonWoods e as instituições por ele criadas, hoje totalmente desacreditadas, o Banco Mundial e o FMI. Num outro seminário, o venezuelano Rafael Flores anunciou que Chávez vai trabalhar pela convocação de uma Assembléia especial da ONU para discutir um novo sistema financeiro internacional, mais democrático. Também vai convocar movimentos sociais a montarem uma demonstração paralela à da Assembléia Geral da ONU para pedir reformas. Mas isso ”é como a busca de poção mágica,“ disse Adhemir Mineiro. Essas instituições viraram instrumentos do governo americano e seus associados europeus, que as manejam como querem, através de estruturas de comando não democráticas que lhes dão maioria de votos e poder de veto. Seria possível democratizas essas instituições? Molly McCoy, da Federação Internacional dos Trabalhadores é muito cética: eles só falam em reforma de governança, e mesmo assim de modo muito tímido. Os Estados Unidos ainda têm o poder de veto. Estados Unidos e Europa sempre alternam na indicação do presidente, e ninguém fala em mudar esse método. A única mudança até hoje foi a criação de um cargo de diretor-executivo para todo o continente africano.


Outra critica ela faz à falta de coordenação política entre elas e outras instituições internacionais. Por exemplo, uma agência da ONU pode indicar como prioridade para determinado país combater a fome, mas o Banco Mundial só empresta dinheiro se esse país abolir certos benefícios sociais que ajudam a combater a fome. A lógica do Banco Mundial é a de estimular os negócios das multinacionais e sua publicação mais procurada é que se chama “como fazer negócios.” Claude Quemar, da CDTM, uma ONG dedicada à denúncia da dívida externa do terceiro mundo, fez acusações ainda mais graves num seminário hoje promovido por um conjunto de Ongs: FMI e Banco Mundial não seguem as leis internacionais para direitos humanos; por exemplo, emprestaram dinheiro ao regime do Apartheid da África do Sul. A CADTM e algumas outras dedicadas à critica do sistema financeiro, como a ATTAC e a Bank Track, propõem como alternativa criar um Banco do Sul, e um FMI do Sul de todos os países do Hemisfério Sul. Eles se retirariam do FMI e do Banco Mundial.


Um grande sistema financeiro internacional alternativo do hemisfério Sul teria capacidade de lidar com todas as reservas internacionais desses países, e seus fundos soberanos, hoje manejados em grande parte pelos bancos privados. Também poderia dar sustentação financeira a países em dificuldades de pagamento, sem as condicionalidades do FMI, como era aliás a função original do FMI, antes de sua usurpação pelos Estados Unidos. Mas a crise veio antes dessa proposta maturar e não parece haver potencial político para sua implementação. Alguns países estão investindo na criação de bancos de financiamento regionais. A integração bancária regional está sendo vista como uma alternativa factível. Oscar Ugarteche, economista mexicano, diz que já está havendo uma aceleração na busca de soluções regionais. Na Ásia, diz ele, um terço das transações regionais já são pagas em moedas locais, não é preciso usar o dólar, ou o marco alemão. Nas Américas já se trabalha a possibilidade de adotar uma moeda regional, além dos convênios de crédito recíproco, pelo qual alguns países só cancelam o saldo das transações acumulado em determinado período, o que exige quantidade menor de moeda forte. Muitas negociações estão em curso para acelerar esses mecanismos, embora sem ter destaque na mídia por serem muito técnicas, diz Ugarteche.


Na América do Sul já estão em curso dois projetos de criação de bancos regionais de desenvolvimento, o Banco Sur, iniciativa antiga do Brasil e Argentina, e Banco da Alba, já em funcionamento embrionário, criado por Chávez. Rafael Flores, da Venezuela, diz que o banco da Alba, parte do projeto de integração regional ALBA liderado pela Venezuela, já funciona há um ano, embora com poucas agências ainda. O bloco da ALBA começou com apenas dois países, Venezuela a Cuba, e hoje já conta com seis (entraram Nicarágua, El Salvador, Bolívia e Equador como observador).


Rafael Flores descreveu o projeto da ALBA com otimismo, destacando seu diferencial de participação popular, através de um conselho de representantes de movimentos sociais, opção por políticas públicas de interesse popular, e formas de contratação de financiamentos inovadores, nas quais o objetivo principal não é o lucro mas a função social do financiamento. Lamentou, nas entrelinhas,que o Brasil ainda não esteja na ALBA. Nesse seminário discutiu-se por que competem dois projetos de banco regional, o da Alba e o do Banco Sur. Eu tive que explicar que tudo passa por governos e os governos refletem graus diferentes de mobilização política. A unidade muitas vezes é impossível e sua busca acaba representando um problema adicional e não a solução. Rafael explicou que Chávez achou lento demais o processo de discussão do Banco Sur e por isso se antecipou. Embora a crise econômica seja o mais importante tema do momento, está sendo discutida em mesas pequenas, com público diminuto. Não se tornou um tema da massa do Fórum Social. A crise galopa e nós andamos a passo de tartaruga. Vai acabar emplacando uma solução Obama – ou seja, os bancos serão salvos da bancarrota com dinheiro público e nada de substantivo vai mudar no funcionamento dos sistema financeiro internacional. Nada, nadinha.



Bernardo Kucinski, jornalista e professor da Universidade de São Paulo, é colaborador da Carta Maior e autor, entre outros, de “A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro” (1996) e “As Cartas Ácidas da campanha de Lula de 1998” (2000).

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